Uma análise dos contos de Sonhos (1990), de Akira Kurosawa

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Lançado em 1990, o filme Sonhos, ou Yume (夢), dirigido por Akira Kurosawa (1910–1998) é um conjunto de oito curtas-metragens. Após a discussão da obra em nosso segundo encontro, sete estudantes do grupo de estudos se organizaram para comentar separadamente cada uma dessas histórias contadas por Kurosawa, buscando evidenciar os traços históricos e culturais do Japão retratados no filme.

Um raio de sol através da chuva, por Matheus Cardoso

A primeira parte de “Sonhos” nos apresenta a história de um menino que presencia a cerimônia de casamento das raposas (denominadas Kitsune dento da cultura japonesa) e por conta disso não poderia retornar para casa até tirar a própria vida ou conseguir o perdão dessas. Dentro das lendas e mitos japoneses, as Kitsune podem ser retratadas como animais dotados de habilidades de transformação, como mensageiras divinas ou como seres místicos que após quase 1 milênio de vida podem adquirir nove caudas e com isso a capacidade de virar provocativas e encantadoras mulheres. Há lendas que convergem essas características, outras que contam diferentes significados. Uma coisa é certa, as Kitsune compreendem em um importante componente do imaginário cultural japonês e não podemos ignorar, vista até sua não rara presença em games e animês.

Eis que o desfecho do curta nos sugere que o menino foi em busca das desculpas. Para a análise, é preciso compreender o conceito de Ma ( 間 ) tal como nos apresenta Michiko Okano, para isso é muito válida a leitura do artigo “Ma — a estética do ‘entre’ “, acesso disponível pelo link: https://medium.com/@artejaponesaunifesp/ma-a-est%C3%A9tica-do-entre19087adae31e.

Em diversas cenas torna-se possível pontuar os momentos onde o Ma está presente, serão assinalados aqui alguns em que se mostra mais evidente: no espaço domiciliar em que o menino e a mulher se encontram no início — um nem dentro, nem fora de casa -; nos silêncios e pausas tão marcados da música e da dança que compõe a cerimônia das Kitsune; e finalmente no próprio desfecho, uma vez que agora podemos compreender a importância sinalizada pelo diretor compreendida nesse “caminho”, e não no produto final em si. É destacada, portanto, a importância da sugestão, uma vez que não nos é possibilitado saber o destino do personagem. O que merece a atenção nesse aspecto é esse trajeto intermediário, como marcado por Okano “Esse caráter da possibilidade, potencialidade e ambivalência presentes no Ma”, ilustrado no filme por sua vez, na figura estonteante campo repleto de flores.

O jardim das pessegueiras, por Guilherme D’Aragão

O conto se passa em uma grande propriedade e tem como protagonista um garoto um pouco mais velho que a criança do conto anterior. A câmera o acompanha se deslocando pelos cômodos da casa para servir um grupo de garotas que se reúnem. Um altar com bonecas ao fundo indica que o contexto é a festa conhecida como Hinamatsuri. Comemorada no dia 3 de março, marca a florada dos pessegueiros e celebra o crescimento saudável das meninas. Nessa época são montadas dentro das casas um altar para as hina-ningyô, representações do imperador, imperatriz e seus serviçais, com as vestimentas da época Heian (794–1185), que é a da conhecida literatura Contos do Genji, de Murasaki Shikibu, do século XI.

Voltando ao filme, o protagonista leva seis tigelas para as garotas, considerando que há seis delas para serem servidas. Chegando lá, ele fica confuso quando vê sentadas apenas cinco. Entretanto, ele vê de longe a que faltava e começa a correr atrás dela até a área externa da propriedade, onde é surpreendido pelas personificações das hina-ningyô. As bonecas anunciam para o garoto que naquele ano não visitarão aquela casa, uma forma de punição aos proprietários por eles terem cortado todos os pessegueiros do pomar. A criança então chora e alega que sua tristeza não é pelos pêssegos (que podem ser comprados a qualquer momento), mas pela lamentação de todo um pomar de pessegueiros floridos que não existem mais. Tocadas pela fala do protagonista, as hina-ningyô o concedem uma última visão da florada dos pessegueiros. No final, novamente todos eles estão cortados, mas no meio deles há uma nova e pequena muda florida, num signo de esperança e vida. Na discussão a respeito desse conto foram levantadas algumas interpretações, tais como uma reflexão sobre soberania e a relação do ser humano com a natureza, além do simbolismo da criança (seja o protagonista ou a garota que mais tarde se transforma na nova muda) enquanto alguém que possui mais sensibilidade para lidar com o mundo ao seu redor e suas tradições.

A nevasca, por Melissa Eiras

Um pequeno grupo de montanhistas — incluindo possivelmente o próprio Kurosawa, caminha com muita dificuldade em meio a uma forte nevasca na tentativa de chegar ao acampamento mais próximo.

Este sonho é singelo, com um encanto diferente dos anteriores. Para alguns as cenas podem remeter a um mau sonho, afinal durante o tempo todo o que se prova é a dificuldade: os montanhistas não podem respirar, caminhar, se comunicar nem avançar normalmente.

Em um cenário azulado e gelado, os homens discutem entre si. Parece impossível prosseguir e a maioria está confusa e extremamente cansada. Convencido, o líder adormece como os outros, porém experimenta a aparição de uma figura mítica japonesa, a Yuki-Onna. Essa mulher das neves é um espírito belo e sedutor, conhecido por confundir as pessoas e atraí-las para a morte. Sussurrando palavras de conforto ela quase convence o homem a se entregar à neve, no entanto ele resiste, a surpreende e a faz desaparecer com a nevasca. O líder desperta os companheiros, nota que a tempestade cessou e que o acampamento está apenas há alguns metros de distância.

O simbolismo neste sonho pode estar na percepção da relação intensa entre o ser humano e a natureza. Embora o homem seja parte dela, não se faz necessário.

O túnel, por Maria Clara Russo

Em “O Túnel” estamos agora em um Japão pós guerra, mas não em um cenário de destruição, mas de um encontro do indivíduo com ele mesmo e com os seus fatos passados.

A história começa em um dia claro, um homem vestido de uniforme de soldado, se depara com um túnel no meio do seu caminho, e então ele ouve sons vindos de lá e se encontra com um cachorro extremamente raivoso, e seus latidos altos e ferozes para cima do soldado, o que faz com que ele entre no túnel.

O Túnel primeira vista parece ser como qualquer outro no meio de uma rua, mas se revela ser algo a mais, é um lugar escuro, um espaço de transição e intermediário, e que ao sair dessa passagem o soldado se encontra já no anoitecer e os latidos não estão mais à vista.

O conceito de “Ma” é uma ênfase neste curta, pois é justamente um ponto de intervalo de um mundo de memórias, onde irá se encontrar culpas, responsabilidades, assim se traduzindo no elemento do túnel.

Há um encontro entre vida e morte, o soldado era na verdade comandante de um pelotão. O pelotão se apresenta como Yurei, e se questionam se morreram mesmo. No Japão, os fantasmas são denominados Yurei, almas penadas, criaturas que assombram.

O comandante diz algo emblemático: “Dizem que vocês foram heróis, mas morreram como cães, no entanto voltar dessa forma vagando pela Terra, qual é o propósito? Voltem e descansem em paz!

Assim, “O túnel” faz parte dessa aventura de Sonhos, em que temos um Japão em parte assombrado pelo seu passado feroz na Guerra, e ao mesmo tempo ferido na alma mas segue em frente, está entre, assim como um túnel que está entre e no meio de um caminho.

Corvos, por Barbara Rebelo Tebecherani

O sonho “Corvos” começa com um passeio no museu, no qual acompanhamos um jovem artista visitando uma exposição de Van Gogh.

No filme existem momentos que marcam a transição entre o real e o sonho. Aqui, ela se dá pela travessia da ponte de Arles que, inspirado pela obra de Utagawa Hiroshige, Van Gogh decidiu pintá-la em quadros com múltiplos pontos de vista. Ele nutria grande admiração pela arte japonesa e é até hoje muito popular no país.

Adentrando as paisagens interioranas amplamente retratadas nos quadros do pintor, seguimos com o protagonista na busca por compreender o processo criativo do artista, mas encontramos um Van Gogh incomodado em perder tempo conversando. Para ele o artista está em sua obra e por isso não há necessidade dessa busca.

No encerramento do sonho, Van Gogh segue seu caminho entre os campos e ao desaparecer no horizonte um bando de corvos levanta voo, transformando a cena no famoso quadro “Campo de Trigos com Corvos”, uma das últimas obras pintadas por ele. A cena expõe a reflexão de que o artista desparece (morre) e o que permanece é a sua obra, o processo não importa, mas sim o que o artista deixa.

Monte Fuji em chamas, por Luísa Dálete Oliveira Gomes

“Monte Fuji em chamas” é a sexta sequência do filme Sonhos, no qual assistimos à erupção do Monte Fuji juntamente com as explosões dos reatores nucleares no Japão. Entre o céu vermelho cheio de cinzas e fumaças vemos uma multidão correndo desesperada. Nesse prenúncio inevitável do fim, alguns fogem do caos se refugiando perto do mar, onde só restam um homem, um executivo, uma mulher e duas crianças. Ali eles percebem que muitos suicidaram-se pulando no mar.

O executivo descreve detalhadamente o efeito que cada fumaça colorida (que aparece na cena) causa: Plutônio 239 (causador de câncer); Estrôncio 90 (leucemia) e Césio 137 (mutações genéticas e deformidades). Por fim, o executivo assume que foi um dos responsáveis pela manutenção da usina e joga-se no mar. Há uma intensa reflexão sobre a relação do homem com a natureza e de como certas invenções podem nos levar ao caos.

O demônio que chora, por Luísa Dálete Oliveira Gomes

“O demônio que chora” é um pesadelo que representa o cenário pós-desastre nuclear em sequência ao “Monte Fuji em chamas”. O mundo é transformado em um recanto de demônios, detritos radioativos ou ainda algumas flores que sofreram diversas mutações. O homem que aparece vagando encontra um demônio (“oni”) com um chifre. Há uma intensa névoa na ambientação que remete ao contexto onírico do filme. Inicialmente, o demônio relata como é o local destruído pela radiação e de como se tornou um demônio: sua ganância. Nessa distopia pós-nuclear, existe uma forte hierarquia entre os demônios. Aqueles com apenas um chifre tornam-se alimento de outros. Porém, o sofrimento recaí sobre todos eles, com uma intensa dor que os acometem nesses mesmos chifres que os fazem chorar sem parar. Entende-se nessa sequência uma reflexão sobre as consequências da ambição humana e da destruição da natureza.

Vilarejo dos moinhos, por Erik Nakagawa

No último conto do filme Sonhos, Kurosawa nos apresenta a um mundo ativista e preocupado com a natureza. Um vilarejo que renunciou às invenções tecnológicas e que busca se aproximar ao máximo da natureza e das coisas simples da vida. Um senhor de centro e três anos de idade, ao conversar com o jovem viajante, nos faz refletir sobre os perigos da nossa jornada tecnológica desenfreada, que vem distanciando cada vez mais o homem da natureza.

O vilarejo dos moinhos é essencialmente sobre as rápidas transformações passadas pela humanidade nos últimos séculos. O mundo aderiu a várias inovações tecnológicas, passou por guerras mundiais, e sofreu as consequências terríveis de acidentes nucleares. Com essas rápidas mudanças, o ser humano se distanciou cada vez mais da natureza e das coisas mais simples que o universo pode nos oferecer. Acima de tudo, a humanidade se esqueceu daquilo que é fundamental, nós também fazemos parte da natureza, e por isso, não podemos destruí-la.

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Grupo de Estudo Arte Japonesa Unifesp
Grupo de Estudo Arte Japonesa Unifesp

Written by Grupo de Estudo Arte Japonesa Unifesp

Grupo de estudo ministrado pela Profª Michiko Okano com o objetivo de divulgar a arte e a cultura japonesa no Brasil

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