O efêmero que transforma os Dias (em) Perfeitos

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Texto por: Nanda J. Muniz

O músico Cartola, em 1976, nos advertiu de que o mundo é um moinho, capaz de triturar sonhos. Em “Dias Perfeitos”, no entanto, arriscando-se a ser visto apenas como um idealizador romântico, Wim Wenders, na companhia de Takuma Takasaki, nos mostra que é possível vislumbrar beleza no ordinário, mesmo quando os moinhos do mundo ameaçam reduzir nossas ilusões a pó¹.

Acompanhamos a rotina de Hirayama (Yakusho Koji), o metódico protagonista que desperta todas manhãs com o ruído de uma vassoura raspando sobre o asfalto da rua — a senhora que varre as ruas, inclusive, é a primeira pessoa que vemos no filme. Todos os dias o protagonista segue o mesmo passo a passo: dobrar a roupa de cama, escovar os dentes, aparar o bigode e a barba, regar as plantas, vestir o macacão de trabalho, comprar uma lata de café e dirigir até Shibuya pelas ruas da cidade; acompanhado pela presença inevitável da Tokyo Skytree — talvez a única “árvore” pela qual ele não demonstre qualquer apreço.

É um filme em que, a princípio, nada acontece, e é assim que Wim nos tem exatamente onde quer. Já acostumados à rotina, somos tão sacudidos quanto Hirayama quando a vida irrompe em seu caminho: o romance conturbado de Aya e Takashi, a aparição de Niko, o relacionamento passado de Mama, a conversa com Tomoyama ou, até mesmo, um desconhecido dançando com as árvores. É essa pausa na rotina rigorosa do personagem que nos apresenta suas gentileza e sensibilidade, e empresta o tom poético a Dias Perfeitos.

frame do filme

O mundo é formado por muitos mundos. Alguns estão conectados. Outros, não.²

Quando conhecemos a sobrinha de Hirayama, é como se achássemos uma peça do quebra-cabeça. Niko é digital, Hirayama é analógico. Ele desfruta de suas músicas em fitas que rebobina nos fins de semana, enquanto Niko questiona se poderia encontrá-las no Spotify. Ele captura momentos com sua câmera analógica, enquanto ela prefere o celular, ainda que mantenha a câmera que ganhou no passado. São mundos distintos que colidem e mantêm-se intersectados pelas semelhanças.

Não é o relacionamento com Niko somente que nos leva a compreender o protagonista, mas sim aquele abraço de despedida, tão carregado de emoções, que ele compartilha com a irmã. Nesse momento, vemos além da imagem de um homem culto e distante, cercado por plantas, livros e música. Em suas lágrimas, entendemos que, mesmo quem preza o agora, carrega em si o peso do ontem. O depois é o depois, com certeza, mas o ontem, inevitavelmente, faz parte do agora. Não é algo que possa ser resumido como ingenuidade ou falta de compreensão, de forma alguma. Hirayama entende o mundo que o cerca e, assim como Dom Quixote enxergou gigantes nos moinhos de vento, ele enxerga os feixes de luz que rompem nas sombras dos seus.

O fascinante na performance delicada de Yakusho Koji está, sobretudo, em seu olhar e em seus pequenos sorrisos ao observar, sob a ótica do personagem, o céu, as interações mundanas e até a chegada de uma nova colega de trabalho, que parece ser mais responsável que o imaturo Takashi. Está na sua linguagem corporal, que torna tangível a sensação de invisibilidade que o protagonista experimenta diante daqueles que cruzam seu caminho enquanto ele faxina os banheiros modernos de Shibuya.

frame do filme

Ele teria que se levantar em algum momento, ele sabia disso, assim como toda a vida consiste em ter que se levantar mais cedo ou mais tarde e depois ter que se deitar novamente, mais cedo ou mais tarde, depois de um tempo (Palmeiras selvagens, William Faulkner).

Dias Perfeitos é hábil em revelar segredos através de suas referências, onde os livros lidos pelo protagonista se entrelaçam com a história. É necessário apenas que Niko se compare ao personagem principal em “The Terrapin”³, por exemplo, para que saibamos como ela se sente. E embora haja uma ausência perceptível de clássicos japoneses, especialmente na trilha sonora, isso não compromete a experiência do filme. Talvez, se a narrativa avançasse mais uma semana, poderíamos testemunhar Hirayama lendo “A polícia da memória”⁴ ou ouvindo outra música de Sachiko Kanenobu.

Após os créditos, somos apresentados a uma tela que explora o significado da palavra Komorebi (木漏れ日), e este é o momento em que arrematamos a filosofia de vida do personagem. Os dias perfeitos de Hirayama não residem na rigidez de sua rotina ou na organização de seu trabalho, mas sim em cada momento presente, no efêmero, nos pequenos instantes que nunca se repetirão. Quando raios de luz transpassam a penumbra, revelando o extraordinário na simplicidade.

Tem tantas coisas que ainda não sei. É assim que a vida acaba.⁵

O final agridoce nos deixa, além da vontade 10/10 de visitar os banheiros públicos de Tokyo, a importância de apreciar a beleza nas pequenas coisas da vida. É crucial se desapegar para se conectar. Como afirmou o filósofo Jiddu Krishnamurti: ‘Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente’. Mas, claro, viver apenas o presente e se preocupar com o depois só depois é uma tarefa bem mais simples na ficção.

frame do filme

A sociedade do cansaço nos afasta da nossa essência, nos impede de refletir, de estar presente no momento e nos priva do prazer das coisas simples (A sociedade do cansaço, Byung-Chul Han).

Hirayama é um fugitivo das amarras que nos definem pelo trabalho que exercemos e pela quantidade de dinheiro que ganhamos. É desertor desse descontentamento que cultivamos. Segundo Wim Wenders, Hirayama é um pacificador e Dias Perfeitos, uma declaração de paz. Para mim, o filme é também uma carta de amor a tudo de despretensioso que compõe as imperfeições dos nossos dias.

1 Referência à música “O mundo é um moinho”, de Cartola.
2 Trecho do filme “Dias Perfeitos”, 1 ‘28"32.
3 The Terrapin é um conto de Patricia Highsmith. A história gira em torno de um menino, Victor, que é abusado emocionalmente por sua mãe difícil e arrogante.
4 De Yoko Ogawa, A polícia da memória foi publicado originalmente em 1994 e narra a história de uma ilha governada por policiais onde os objetos, casas, e famílias inteiras somem sem deixar vestígios.
5 Trecho do filme “Dias Perfeitos”, 1’52’’26.

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Grupo de Estudo Arte Japonesa Unifesp

Grupo de estudo ministrado pela Profª Michiko Okano com o objetivo de divulgar a arte e a cultura japonesa no Brasil