Análise de "Paprika"

Texto por Beatriz Hollengschwandtner Vichiato

Paprika (パプリカ Papurika) é um filme de 2006, inspirado pelo livro homônimo de Yasutaka Tsutsui, dirigido por Satoshi Kon, produzido pela Madhouse e Sony Pictures Classics. O longa já chama atenção do espectador primeiramente por sua belíssima animação, coloração vívida e forte, transições de cenas e muitas informações visuais (Fig.1). Inclusive, o próprio Satoshi já afirmou que preferiu a produção em animes do que em filmagens pois consegue sintetizar ações muito rápidas em menos tempo, e que seria praticamente inviável fazê-las com atores e cenários físicos ( Fig.2).

Figura 1
Figura 2

À primeira vista você pode ficar confuso, sem saber definir onde a realidade e sonhos se separam, e principalmente onde tudo se mistura. Creio que é de intenção da narrativa formar essa mescla, em que a balança e equilíbrio são discutidos. Equilíbrio esse por exemplo, da vida real, rotineira, de trabalho e experiências nem sempre muito positivas, com uma vivência alegre, fantasiosa e irreal dos sonhos, ou mesmo da internet (Fig.3).

Figura 3

A própria Paprika, uma espécie de avatar da Dra Atsuko Chiba para conseguir realizar seus trabalhos psiquiátricos em tratamentos de traumas, depressão, ansiedade e outros problemas, diz ser fã das artes cinematográficas. E também comenta ao detetive policial Toshimi Konakawa, que iniciou tratamento, em como os sonhos são semelhantes à internet (Fig.4) e onde o inconsciente, grande parte das vezes reprimido, pode ser liberado e explorado. Também é necessário algum tipo de instrumento, no caso do filme, do DC Mini, de autoria do Doutor Kosaku Tokita, em que permite a análise por parte da medicina psiquiátrica, ao mesmo tempo que compartilha os sonhos entre pacientes e profissionais.

Figura 4

Harmonizando os movimentos dos personagens com uma impecabilidade tremenda em transições na edição, Satoshi Kon consegue criar uma narrativa recheada de surrealismo e cisão entre polos da nossa vida. Por exemplo Chiba e Tokita, na qual a primeira é responsável, fria e objetiva enquanto que seu parceiro da empresa é chamado muitas vezes de infantil, desajuizado e leviano. São duas personagens que são considerados como gênios em seus respectivos ramos, embor sejam extremamente diferentes. Também na cena final em que Paprika começa a separar em pares, a realidade e sonhos, a luz e a escuridão, homem e mulher, cujo perigo está pendendo mais para um lado da balança. Do mesmo modo que Atsuko briga com Tokita por não ser responsável em suas ações, o outro diz que a doutora poderia ser mais gentil, como Paprika.

O nome do filme provavelmente vem daí, onde uma pitada de tempero, de sabor, não em seu sentido literal mas na construção de responsabilidade e imaginação, em medidas proporcionais, torna uma pessoa saudável. O uso da psicanálise e da medicina psicológica traria a cura de traumas, cicatrizes esquecidas pela subconsciente ou aqueles que levamos em escolhas e ações do nosso dia a dia, como sentimentos de culpa, medo, inveja, rancor e ódio. Seria uma forma revolucionária com a perspectiva de se analisar e propriamente reviver, quantas vezes se fizerem necessárias os sonhos, o espaço/tempo em que se revelam diversas características importantes para a trama, inclusive na identidade e descoberta de sentimentos muito reprimidos.

-A inveja entre Himuro, assistente na empresa e Tokita, e mesmo na inveja do Konakawa em relação ao amigo que depois morre, quando tinha 17 anos, e acaba por vê-lo em sonhos, lhe causando ansiedade e crises de pânico, o que causa a impotência de Konakawa.

-Também é referência o amor que Chiba sentia pelo menino gênio e que só percebeu ao sonhar, mesmo sendo preocupada em protegê-lo em quase todo filme.

-Da obsessão do Presidente com a possibilidade de um “corpo perfeito” que segundo ele, a liberdade seria alcançada, colocando-se como um guardião do sagrado, do mundo dos sonhos.

-O desejo sexual de Osanai com Chiba.

Todos estes elementos e outros agregam nos traços de personalidade de cada um, e mesmo os sonhos, e sua representação delas podem ter alguma relação (Fig.5, Fig.6).

Figura 5
Figura 6

Com o aparato do DC Mini, da fantasia, mesmo que envolvam sentimentos dos corpos reais daqueles personagens, acabam por influenciar ações e a própria realidade. A própria cena de desmascarar” literalmente o corpo de Paprika, revelando Atsuko, como uma segunda pele, me trouxe esta reflexão.( Fig.7)

Figura 7

Essa cena, pode ainda se relacionar ao seguinte diálogo entre Atsuko e Páprika, posterior à cena citada, onde a cientista diz:

Por que não ouve? É uma parte de mim!

Nunca pensou que você possa ser uma parte de mim? — a Avatar pergunta

Muitas inspirações no cinema ocidental provêm com clara referência ao enredo de Kon. Cenas extremamente semelhantes podem ser vistas nos filmes como A Origem (2010), alguns episódios da série britânica Black Mirror sobretudo com San Junípero( Temporada 3, Episódio 4) e mesmo filmes que vieram antes da animação japonesa, seja pela temática mais crua em abordar traumas psicológicos a partir de ações nos sonhos como Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004).

Seja mesmo em paralelos com produções nipônicas e ate mesmo analisadas pelo grupo de estudos em distintas abordagens com enredos mais leves como Your Name (2016) ou em séries mais decompostas, numa visão mais realista perturbadora como Serial Experiments of Lain, o que não podemos deixar de notar é como a identidade está ligada a elementos que não temos o total controle.

Toda essa revolução que causaria no ramo da medicina não parecia tão distante da realidade nem em 2006, num período de crescimento da internet e dispositivos particulares como computadores, celulares e notebooks, e muito menos em 2020. A pandemia do COVID-19 que se alastrou globalmente acabou por impedir o contato físico e externo para muitas pessoas, e trabalhos remotos, aulas e cursos e as relações interpessoais em sua grande maioria acabam passando por um filtro de telas, de conexões invisíveis a olho nu e que hoje em dia moldam nossas informações, gostos e escolhas, influenciando de forma tão rotineira que não percebemos esse controle.

Mas erra quem pensa se tratar apenas de um animê colorido e infantil, enquanto na realidade cenas e assuntos pesados, são lidados de forma natural e desenvolvida. Momentos de crises de pânico, ansiedade, suicídio, abuso, estupro e assassinato, tornam-se alguns dos elementos mais explorados nas narrativas de Kon. (Fig.8). A instabilidade de quem somos, e mesmo em momentos de rendição ou melhora, assim como tratamentos médicos, se constitui como processo em etapas e a balança nunca será equilibrada completamente.

Figura 8

E para encerrar me lembrei de um conto taoísta de um mestre, que após caminhar em um dia de muito sol, deitou-se em uma árvore para dormir. Naquele sonho, era uma borboleta, voando entre plantas no campo. Ao acordar o sábio não sabia dizer quem era “será que eu era antes Chuang Tzu sonhando ser uma borboleta ou sou agora uma borboleta adormecida, sonhando ser Chuang Tzu?” (Fig.9)

Figura 9

LEITURAS

- O complexo universo feminino nas animações de Satoshi Kon, fevereiro 2019: <https://deliriumnerd.com/2019/02/11/animacoes-satoshi-kon-personagens-femininas/> Acesso em 16/12/2020

- Paprika (2006), texto por Miguel Serpa <https://medium.com/@migdomserpa/paprika-2006-f80840e925bf>

- Making of Paprika Parte 1, em inglês <https://www.youtube.com/watch?v=hlHCdi6ASE0>

- Parte 2 <https://www.youtube.com/watch?v=EFGa4tpM-iM>

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Grupo de Estudo Arte Japonesa Unifesp

Grupo de estudo ministrado pela Profª Michiko Okano com o objetivo de divulgar a arte e a cultura japonesa no Brasil