Análise — Adeus Minha Concubina

Texto por: Layla Daniely Lourenço de Almeida

Adeus, Minha Concubina é um filme de drama histórico chinês de 1993, adaptado por Lu Wei a partir da novela de mesmo nome escrita por Lilian Lee. É dirigido por Chen Kaige e estrelado por Leslie Cheung, Gong Li e Zhang Fengyi.

O filme possui duração de 171 minutos e em seu percurso acompanhamos a história de Cheng Dieyi, desde seu abandono por sua mãe em uma companhia que forma atores para as óperas de Pequim até seu apogeu nos palcos e seu trágico declínio. Vemos também sua conturbada relação com seu irmão de palco, Duan Xiaolou, por quem nutria uma paixão, e posteriormente as desavenças com Juxian, prostituta que viria a se tornar a esposa de Xiaolou. Tudo isso ambientado na China do início do século XX que passava por intensas transformações políticas em seu regime.

O longa começa com uma leveza na câmera para retratar a infância de Dieyi, (antes chamado de Douzi) mesmo que o próprio nunca tenha tido momentos de calmaria. Somos introduzidos na vida de Dieyi, no inverno de 1924, através da cena de sua mãe, uma prostituta, levando-o e deixando-o em uma companhia que forma atores para trabalhar nas óperas de Pequim. No começo, temos uma ideia do teor que o filme procura seguir em toda sua duração: o pequeno Dieyi tem um ‘defeito’ aos olhos do mestre Guan que o impossibilita de estar qualificado para se tornar um ator, ele possui um dedo a mais em uma das mãos, o que sua mãe resolve cortando-o fora.

Dentro da companhia, Dieyi não é bem aceito pelos colegas devido sua origem. O treinamento lá é realizado através da dor, os aspirantes a atores, compostos por crianças órfãs e apenas meninos, muitas vezes eram espancados a cada erro que cometiam e também apanhando quando acertavam sob a justificativa de “se lembrar de fazer tão bem na próxima vez”. O único conforto encontrado por Dieyi está na figura de Xiaolou, com quem faz amizade na companhia.

Dieyi, devido sua aparência mais delicada, é escolhido para interpretar os papéis femininos das peças. Ele constantemente está errando suas falas ao praticar a peça “Sonhando com o mundo fora do convento”, quando precisa afirmar “ser por natureza uma garota”, trocando garota por garoto, sendo duramente repreendido todas as vezes. Em um dado momento, Dieyi foge da companhia junto a Laizi, um dos outros garotos, e os dois acabam por assistir uma peça da ópera de Pequim, onde se emocionam e choram, assim decidindo por voltar à companhia mesmo sabendo que seriam surrados pela fuga. Dieyi só não é surrado até a morte pois todos param quando percebem que Laizi se enforcou antes de ser punido.

Na Kun, um agente que financia óperas, visita a companhia em busca de atores em potencial. Quando Dieyi repete seu erro na frente do agente, Xiaolou ordena que ele comece de novo. Dieyi finalmente sussurra: “Sou por natureza uma garota, não um garoto.” Ele entrega todo o monólogo com sucesso, para o entusiasmo da companhia, e garante o patrocínio de Na. A companhia é convidada a se apresentar para o eunuco da corte Zhang. Os dois meninos são levados para a casa de Zhang, onde encontram uma bela espada, que Douzi expressa o desejo de dar a Xiaolou um dia. Eles apresentam a peça que viria ser o carro chefe deles, Adeus, Minha Concubina. Zhang mostra um estranho interesse em Dieyi, vestido de concubina Yu, o que resulta em um abuso sexual sofrido por Dieyi. Em nenhum momento ele fala sobre o que aconteceu com ninguém, mas fica implícito que todos ao seu redor tenham uma boa ideia do que ocorreu. Após isso, Dieyi encontra um bebê abandonado ao qual decide levar para companhia com ele.

Há um salto temporal de cinco anos: agora em 1937 vemos Dieyi e Xiaolou adultos que se tornaram grandes estrelas da ópera de Pequim. A fama deles atrai a atenção do renomado mestre Yuan Shiqing, que se encanta por Dieyi. Yuan elogia suas atuações, mas Dieyi hesita em aceitar se encontrar com ele. Quando Xiaolou decide noivar impulsivamente com Juxian, uma prostituta, Dieyi claramente se mostra insatisfeito com isso. No mesmo dia do noivado, Dieyi e Xiaolou teriam um encontro com Yuan para acertar um patrocínio para os dois, o que Xiaolou recusa imediatamente e de forma displicente. Dieyi por sua vez vai ao encontro e, na casa do mestre Yuan, encontra a antiga espada de Zhang. Motivado por isso decide aceitar as investidas de Yuan para consegui-la como presente. Os dois, Dieyi e Yuan, se pintam como os protagonistas de Adeus, Minha Concubina e parecem meio bêbados enquanto a encenam, Dieyi puxa a espada de verdade para encenar a cena em que a concubina Yu se mata, ao que Yuan o impede.

Cheng Dieyi volta para a festa de noivado de Xiaolou para entregar-lhe a espada, que insinua: “onde você conseguiu essa espada tarde da noite?”. Magoado, Dieyi rompe a parceria com Xiaolou e sai furioso da festa pouco antes da invasão das tropas japonesas. Xiaolou tenta ir atrás dele, mas Juxian o impede. O rompimento não dura e eles são mostrados se apresentando junto para uma plateia de tropas japonesas, ao que o Xiaolou se mete em um conflito com os japoneses e é levado preso. Dieyi prontamente se dispõe a cantar para os japoneses, mas quando Juxian aparece, ele faz com com ela implore e prometa sumir depois que eles libertassem Xiaolou. Então, Dieyi canta para as tropas japonesas e consegue a liberdade de Xiaolou, que o agradece cuspindo em seu rosto por ter cantado para os japoneses, assim como Juxian não mantém sua palavra e casa-se com Xiaolou. Enquanto isso, Dieyi e mestre Yuan desenvolvem uma amizade mais íntima.

Juxian não quer que Xiaolou trabalhe como ator. Ela quer ter uma vida com paz e tranquilidade e Xiaolou não parece feliz com tal situação. Dieyi e Xiaolou são chamados por seu antigo mestre da companhia, Guan, pois o mesmo já está velho e não consegue mais atuar. Ele morre e a companhia, que ainda estava funcionando, é desmanchada. Dieyi e Xiaolou encontram um menino que insiste em cumprir uma punição e que deseja muito ser ator. Aquela criança era a mesma que foi salva por Dieyi e ele decide levar o menino com ele mais uma vez.

Em mais uma apresentação de Adeus, Minha Concubina, dessa vez para o exército nacionalista chinês, a apresentação é interrompida no meio e começa uma grande confusão no palco entre os soldados e os atores. No final Juxian, que estava grávida, perde o bebê e Dieyi vai preso acusado de traição por ter cantado para as tropas japonesas. Juxian vê nessa situação a oportunidade de quitar a dívida que tinha com Dieyi por ele ter libertado Xiaolou e assim se ver livre da dinâmica dos dois, então juntos eles pedem ajuda do mestre Yuan para salvá-lo do julgamento. Dieyi simplesmente não coopera e diz que os japoneses não o forçaram a cantar. Ele questiona os soldados qual o motivo de não o matarem logo. Dieyi é libertado sob o pagamento de uma fiança.

Ao longo do percurso, Dieyi se vicia no uso de ópio e vai perdendo sua sanidade aos poucos, mesmo que ainda continuasse atuando como concubina Yu. Eles então se apresentam para o exército de libertação do povo e em seguida é mostrado o julgamento do mestre Yuan como ‘contrarrevolucionário’. Sua sentença é a execução por não apoiar o novo regime da nação.

No processo de reabilitação, Xiaolou e Juxian são quem apoiam e lidam com Dieyi. Juxian nesse caso atua quase como uma mãe amparando o filho. Com sua recuperação, é oferecido a Dieyi um trabalho como orientador para as novas óperas do novo regime. Ele não parece a favor por sua falta de figurinos e cenários exuberantes, e reconhece as novas óperas como ópera moderna e não Óperas de Pequim. A criança adotada por Dieyi, Xiao Si, se envolve muito com o novo regime, sendo um grande partidário, assim como se mostra rancoroso a Dieyi pelo treinamento rigoroso e se vinga: em uma apresentação de Adeus Minha Concubina ele usurpa o papel de concubina Yu e ninguém nem ao menos avisa Dieyi que ele não vai apresentar na peça. Devastado com a situação, Dieyi decide se isolar de todos.

Com a Revolução Cultural, muitas denúncias são feitas e toda a companhia acaba ‘presa’ pelo exército. Eles são obrigados a se pintarem e são levados a uma espécie de praça. Dieyi e Xiaolou são considerados traidores do novo regime. Colocados sob pressão, Xiaolou acusa Dieyi de atos contrarrevolucionários e sugere publicamente que ele é homossexual. Dieyi devolve as acusações e ainda revela que Juxian era uma prostituta antes de se casar. Xiaolou, para se proteger, jura que não ama Juxian e que vai romper com ela. Com o coração partido, Juxian comete suicídio enforcando-se. Xiao Si é, mais tarde, pego pelos soldados cantando as falas da concubina Yu enquanto admira as luxuosas jóias de palco que tirou de Dieyi.

Na cena final, já em 1977, Dieyi e Xiaolou se reencontram, parecendo ter consertado seu relacionamento. Eles mais uma vez praticam Adeus Minha Concubina e, no meio do caminho, Xiaolou recita a frase “Sou, por natureza, um garoto” e Dieyi comete o mesmo erro de terminar com “E não uma garota”. Quando sua performance atinge o clímax, Dieyi pega a espada de Xiaolou para cortar sua própria garganta, fazendo um paralelo com o ato final da concubina na ópera. Xiaolou fica em estado de choque e chama o nome de Dieyi, e antes que a tela escureça, ele sussurra humildemente o nome de infância de Dieyi, Douzi.

Adeus Minha Concubina é um filme longo e denso, com muitas facetas para serem destrinchadas, como a extrema violência usada contra as crianças, mas que é permeada por uma câmera leve, com muitos planos sequências que deixam a sensação de que tudo foi facilmente filmado, quando esta não é a realidade. O único momento em que o diretor recusa uma cena violenta é ao se “recusar” mostrar o abuso sexual sofrido pelo jovem Dieyi. O suicidio de Laizi é uma das cenas mais impactantes, uma vez que já é por si só uma situação chocante, acrescido do fato de ocorrer após a sequência que mostra a emoção das crianças ao ver o auge daquilo que podem se tornar em cima do palco. Dialoga com uma das mais famosas pautas que permeiam a arte “Qual o custo para se tornar um grande artista?”

Essa leveza só é usada enquanto retrata a infância de Dieyi. No período adulto essa sutileza é deixada de lado e o diretor toma rumos mais conhecido pelo cinema estadunidense, sendo a interpretação dos atores o grande destaque do segundo ato em diante. O que não quer dizer é claro, que não há mais momentos brilhantes da produção, como vale citar as cenas que retratam o vício de Dieyi, o protagonista é filmado através de véus que são combinados com filmagens de um aquário bem sujo e embaçado que cria uma sensação de aprisionamento e confusão.

Quanto a direção de arte, toda a ambientação é muito convincente, o destaque claro para todos os figurinos exuberantes de quando estão retratando a peça, mas há dois pontos a serem pontuados. Primeiro: a maquiagem que eles usam para se apresentar: em sua grande maioria os dois protagonistas têm o rosto pintado por Dieyi, que possui uma delicadeza e cuidado enorme que demonstram, não só o seu perfeccionismo para com a ópera, mas também o amor genuíno que ele sente por aquilo. Quando Xiaolou é maquiado por outras pessoas ou por si mesmo ao longo da trama é possível ver pequenos defeitos na maquiagem em seu rosto, como linhas meio tortas ou rasuradas, mesmo que minimamente. E o segundo, os cenários das plateias nas apresentações, a cada nova invasão ou revolução ocorrida a plateia da ópera muda e mesmo que se não tivesse nenhum humano dentro do local, seria possível informar qual o regime estava comandando no momento, um exemplo sendo a alocação de bandeira japonesas espalhadas pela plateia quando está retratando a época da invasão japonesa.

É preciso pontuar também toda a construção da relação entre Dieyi e Juxian e em como essa relação vai além da animosidade mútua que ambos possuem; a dinâmica deles é confusa, existe um entendimento não pronunciado entre os dois, na cena da praça onde Xiaolou se volta contra os dois para se proteger, há uma troca de olhares entre os dois, é como se tivessem conversando sem dizer nenhuma palavra. Depois que toda a confusão acaba, Juxian entrega a espada para Dieyi, é um ato simbólico, ela não diz nada e era um ponto em que nem precisava. Os dois viveram tentando afastar o outro de Xiaolou, quando na realidade Xiaolou quem não merecia estar perto de nenhum dos dois, pois muitas vezes trata os dois com displicência e claramente estava disposto a entregar a cabeça de quem fosse se isso significasse se proteger. E também o paralelo entre Juxian e a mãe de Dieyi está presente na maior parte das cenas deles, que dá mais um motivo para toda a rejeição de Dieyi.

O longa é permeado por questões lgbtqia+, concentrado na figura de Dieyi, como a homosexualidade, sua vivência dentro daquela sociedade naquele período e também na figura do homem travestido para o teatro, a resistência e a passabilidade que era dada e o tratamento diferente que Dieyi recebia de muitos ao seu redor.

As atuações são muitos boas, todo o elenco é muito bom e desempenha um papel incrível, mas Leslie Cheung é um show à parte. Todos os trejeitos, a emoção transmitida através do olhar, a raiva, a tristeza, ele é tão convincente que torcemos para que Dieyi tivesse um final feliz, mesmo que o personagem tenha tido diversas atitudes questionáveis para dizer o mínimo. Uma curiosidade é que a voz que ouvimos durante grande parte do filme não é do Leslie Cheung, mas sim do ator Yang Lixin, que dublou as cenas. A voz de Leslie foi usada em algumas cenas em que ela está distorcida devido ao sofrimento físico e psicológico de Dieyi.

Quanto a prémios e recepção de público, “Adeus minha concubina” foi o primeiro filme chinês a receber a palma de ouro do Festival de Cannes, como ganhou BAFTA de melhor filme de língua não inglesa e duas indicações ao Oscar, uma de melhor filme de língua não inglesa e melhor fotografia. O filme chegou a ser lançado na China, mas logo foi retirado e banido do circuito, voltou alguns meses depois com cenas retiradas devido a censura. Acredita-se que o filme só tenha voltado ao circuito devido a repercussão internacional do caso e porque a China estava na campanha para sediar as Olimpíadas, então não queria propaganda negativa com o assunto. Entretanto, não foi apenas a China que retirou cenas do longa, a distribuidora estadunidense do filme também exibiu nos cinemas uma versão reduzida do longa ao qual o Presidente do Juri de Cannes disse que o filme ali exposto não era o mesmo visto em Cannes. A versão completa só foi vendida em DVD nos Estados Unidos.

Adeus Minha Concubina é um filme excelente que ao longo de suas quase três horas te leva para uma viagem à China do início do século XX, discute diversos pontos dentro da arte e da vivência de seus artistas, como presenteia o público com uma fotografia ótima e uma performance excepcional de seu protagonista. É um filme que vale seu tempo e que provavelmente ficará em seus pensamentos por bem mais que suas três horas.

Grupo de Estudo Arte Japonesa Unifesp

Grupo de estudo ministrado pela Profª Michiko Okano com o objetivo de divulgar a arte e a cultura japonesa no Brasil