Análise— Memórias de uma Gueixa

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Texto por: Gladys Agbanuse

Título original: Memoirs of a Geisha, Ano de produção: 2005. Duração: 2h 25min. País de origem: Estados Unidos. Diretor: Rob Marshall.

“Memórias de uma Gueixa” é um filme melodramático e encantador até o último segundo, mas repleto de clichês e problemáticas difíceis de engolir. O filme conta a história da pequena Chiyo, uma garota cujos olhos cinza-azulados transparecem o que há de mais impactante na personalidade da protagonista: a persistência em alcançar o que deseja martelando um destino que não pode ser detido. Como a narrativa explica, o fato dela carregar muita água na personalidade a faz sempre encontrar um jeito de continuar fluindo, seguindo em frente.

A vida de Chiyo inicia-se em Yoroido, uma aldeia de pescadores representada nas cores azul, cinza e preto para transparecer a dureza da vida local e a ausência de luz, de esperança e a presença do sombrio e da tristeza em um período marcado pelo luto ao perder a mãe, ser vendida pelo próprio pai para se tornar uma gueixa e posteriormente separada de sua irmã mais velha, Satsu. A separação só acontece porque Chiyo atendia os padrões para viver em um okiya (uma casa de gueixas) enquanto Satsu apenas se encaixava no distrito do prazer (local que era chamado de tatsuyo por abrigar prostitutas).

Ao ser adotada pela Okaa-san do okiya, a responsável por cuidar de uma das gueixas mais famosas daquele período em Kyoto, essa chamada de Hatsumomo, a pequena Chiyo aprende a primeira lição de sua vida como aprendiz de gueixa. Ao presenciar uma discussão entre Hatsumomo e Okaa-san por causa de um amor proibido entre a famosa gueixa e um homem pobre, ela escuta Okaa-san dizer que gueixas não podem amar livremente, nunca!

Com o passar das cenas, é possível perceber que enquanto Chiyo representa a água, Hatsumomo é fogo que persiste até destruir tudo por onde passa. As aflições de Chiyo durante seus anos no okiya são causadas por Hatsumomo. Primeiro, ela é induzida a destruir o kimono da concorrente de Hatsumomo, a lendária Mameha, em seguida, após sofrer com um severo castigo, ela é psicologicamente torturada com informações vagas sobre o paradeiro de sua irmã até decidir fugir e ao ficar gravemente ferida pela fuga dar errado, Chiyo acumula dívidas que a impedem de virar uma gueixa passando assim de aprendiz para escrava do okiya.

Cheia de incertezas como escrava da casa, período representado nas vestes dela — um yukata que traduzia como a personagem era o membro de posição social mais inferior do okiya — , algo inusitado acontece: sentada em uma pequena ponte, ela é agraciada pela generosidade de um homem que percebe a sua tristeza e a presenteia com sorvete e dinheiro, além de elogiar a beleza dela mesmo rodeado de gueixas mais velhas.

O personagem, apresentado como Presidente, desperta na pequena Chiyo o objetivo de se tornar gueixa para ficar ao lado dele. Apesar do momento ser tomado por cores vivas, uma música instigante e interpretações cativantes, nem mesmo o laranja do templo onde Chiyo vai ofertar dinheiro para pedir às divindades para realizar o desejo recente, representando transformação, o marrom do altar como a resistência dela, o amarelo das luzes e velas como prosperidade na semelhança do dourado de uma divindade ou até mesmo o preto como possível sinônimo de busca pela paz, tão diferente do seu uso anterior para refletir angústia e escuridão, impedem quem assiste de questionar negativamente a possibilidade de um romance entre uma criança e um homem adulto.

Como assistir, seja lá o quão belo tenha sido apresentado, um romance tão inadequado tomar rumo e marcar profundamente a vida da personagem, sem sentir um óbvio incômodo?

Com um novo objetivo de vida, Chiyo passa a observar Abóbora, uma colega de okiya, se tornando uma gueixa iniciante (uma maiko) e aprendiz de Hatsumomo com esperanças; e para a surpresa de todos, a gueixa que ela prejudicou a mando de Hatsumomo, aparece disposta a ser mentora de Chiyo e faz um acordo com a Okaa-san para transformá-la em uma das melhores gueixas de Kyoto em seis meses.

Ao lado de Mameha, mesmo que as cenas seguintes coloquem o aprendizado em contradição, ela aprende que gueixas não são cortesãs, muito menos esposas, pois vendem suas habilidades ao invés de seus corpos. Assim, Chiyo inicia um treinamento árduo após passar pelo ritual san san-kudo. Um ritual semelhante ao casamento tradicional japonês que sela a irmandade entre Chiyo e Mameha, que a presenteia com uma nova identidade.

Chiyo passa a ser Nitta Sayuri e o mundo das gueixas abre-se por completo para a personagem.

No decorrer, entende-se o que são dan’nas: homens que se dispõem a cuidar de todas as despesas de uma gueixa. E ter um dan’na é um dos maiores objetivos de uma gueixa, mas nem sempre é um vínculo duradouro e no filme a única com um dan’na é Mameha. Além disso, ele não precisa ser fiel à gueixa que cuida como demonstrado nas cenas onde Barão, o dan’na de Mameha, tenta conquistar Sayuri (e ao não conseguir recorre ao abuso).

Para além da longa trajetória da personagem até o homem que considera como o amor da sua vida, essa marcada por tragédias irreparáveis, tristes segredos e humilhações que marcam a vida dela, quem assiste a história de Sayuri passa a entender um pouco sobre o mundo das gueixas, mas também absorve diversas fantasias que não correspondem com a realidade ou são romantizadas ao extremo como seu relacionamento com o Sr. Presidente.

Por exemplo, assim como para as outras gueixas, o ritual da perda da virgindade chega para Sayuri, mas tal ritual, segundo a gueixa que inspirou a história do livro, é inexistente e fruto de fantasias da liberdade criativa dos envolvidos na criação do livro e do filme. Sendo essa uma cena tão importante para o filme, pois é o que praticamente dita o fim do reinado de Hatsumomo e o surgimento de Sayuri como uma lenda em Kyoto. É impossível não reforçar a crítica de que filmes, mesmo que baseados em histórias reais, nunca são um retrato 100% fiel da realidade.

As roupas, penteados e vestimentas visualmente esplêndidas presentes no longa metragem representam bem as personalidades das personagens ao colocar poucos acessórios e a frequência da cor azul (para reforçar sua relação com a água) na caracterização de Sayuri, exagerar na de Abóbora que se enfeitava ao máximo para representar o desespero em ser reconhecida, poupar Mameha que mantinha acessórios simples para representar a calmaria e o controle de sua personalidade em contrapartida de Hatsumomo que sempre recorria a cores escuras e penteados não tradicionais como demonstração de rebeldia.

Mas não condizem com os padrões estéticos seguidos na década de 40, algo preocupante considerando que o retrato estético de uma gueixa é o elemento essencial na construção de seu ser (DALBY, 1983). Assim como a dança de Sayuri no teatro é contemporânea demais para a época.

Para piorar, a ausência de atrizes japonesas nos papéis principais, pois as três principais atrizes são chinesas (Zhang Ziyi como Sayuri, Gong Li como Hatsumomo e Malaia Michelle Yeoh como Mameha) enfureceram os japoneses, assim como as cenas sugestivas a prostituição presentes até nos mínimos detalhes como, por exemplo, a presença do vermelho por baixo do figurino branco de Sayuri em sua apresentação, representando o ventre feminino e o sangue mestrual, o poder e a maturidade, mas simbolizando também o preparo para a perda da virgindade. Contexto também apresentado em outro momento do filme quando Sayuri dá um ekubo, um bolinho de arroz doce com um pequeno ponto vermelho no centro, para um homem.

Revolta completamente compreensível, pois mesmo com a interpretação provinda do filme, com o monólogo final de Sayuri, colocando gueixas como mulheres que incorporam aspectos da feminilidade que não podem ser exercidos por esposas devotadas às suas famílias, as verdadeiras gueixas levam anos para aprender os movimentos representados erroneamente no longa, investem fortunas por kimonos onde os detalhes carregam sempre um significado. No entanto, são representadas em “Memórias de uma Gueixa”, com desvios, como mulheres que colocam suas virgindades a venda e oferecem favores sexuais sem a possibilidade de serem nada além de objetos de fantasia.

REFERÊNCIAS

DALBY, Liza. Gueixa. São Paulo: Objetiva, 2003.

FORTUNATO, Ederli. Memórias de uma Gueixa gera polêmica no oriente. Omelete, 2016.

VENTURIM, Anna Carolina Vianna Franco. A cor como elemento narrativo no filme “Memórias de uma Gueixa”. Brasília, 2013.

CARVALHO, Lu Dias. Gueixa (V) — O Mizuage. Vírus da Arte & Cia, 2013.

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Grupo de Estudo Arte Japonesa Unifesp

Grupo de estudo ministrado pela Profª Michiko Okano com o objetivo de divulgar a arte e a cultura japonesa no Brasil